quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Sobre a Liberdade


"A Liberdade é estrangeira, como tantos outros deuses que os americanos prezam. Nesse caso uma francesa, apesar que, em deferência as sensibilidades americanas, os franceses tenham coberto aquele peito magnífico da estatua que deram de presente a Nova York. A Liberdade (...) é igual a uma casca de banana, só que com gosto ruim e ironia incluída. (...) A Liberdade é uma cadela que deve ir para a cama sobre um colchão de cadáveres, (...) uma cadela que gostava de trepar no refugo da guilhotina. Segura a sua tocha o mais alto que puder, minha cara, porque ainda tem um monte de ratos no seu vestido e um corrimento gelado escorrendo pelas suas pernas."
"Eu acho que ela é bonita" disse Shadow
"Essa" disse Wednesday "é a estupidez eterna do homem. Andar atrás da carne doce, sem perceber que não passa de uma cobertura bonita para ossos. Comida de verme. Você passa a noite se esfregando em comida de verme. Sem ofensa."

Neil Gaiman
Deuses Americanos

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Considerações a respeito da morte...

    Soneto 71
    William Shakespeare
    (Tradução de Jorge Wanderley)



    Quando eu morrer não chores mais que à hora
    De ouvir os sinos insensíveis dando
    O aviso ao mundo vil: - que fui embora,
    E entre vermes mais vis estou morando.

    Nem lembres em meu verso, por momentos,
    A mão que o escreveu: pois te amo tanto,
    Que é melhor me esquecer teu pensamento
    Do que lembrar e te levar ao pranto.

    E se acaso um dia um verso meu retomes
    Quando ao barro eu for parte reunida,
    Não lembres nem sequer meu pobre nome;

    Decline o teu amor com minha vida.
    Não veja o mundo, se sogres por mim,
    Razão de zombaria após meu fim. 

                                                                   

domingo, 18 de novembro de 2012

Preludio de Morte

“Death is before me today
Like the recovery of a sick man,
Like the going forth into a garden after sickness

Death is before me today
Like the odor of myrrh,
Like sitting under a sail on a windy day.

Death is before me today
Like the course of the freshet,
Like the return of a man from the war-galley to his house.

Death is before me today
As a man longs to see his house
When he has spent years in captivity.”

(Pyramid Texts, 3000 BC, cf. Miriam Lichtheim: ‘Ancient Egyptian Literature’, Part I, 1973)


                           *****


“A morte está diante de mim hoje:
como a recuperação de um doente,
como ir para um jardim após a doença

A morte está diante de mim hoje:
como o odor de mirra,
como sentar-se sob uma vela num bom vento

A morte está diante de mim hoje:
como o curso de um rio,
como a volta de um homem da galera para a sua casa

A morte está diante de mim hoje:
como o lar de um homem que anseia por ver,
após anos passados como um cativo”

(cf. recitado por Sandman, Neil Gaiman)

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O Corvo


    by Edgar Allan Poe
    (tradução de Fernando Pessoa)                                   


    Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
    Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
    E já quase adormecia, ouvi o que parecia
    O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
    "Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
    É só isto, e nada mais."

    Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
    E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
    Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
    P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
    Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
    Mas sem nome aqui jamais!

    Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
    Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
    Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
    "É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
    Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
    É só isto, e nada mais".

    E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
    "Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
    Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
    Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
    Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
    Noite, noite e nada mais.

    A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
    Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
    Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
    E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
    Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
    Isso só e nada mais.

    Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
    Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
    "Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
    Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
    Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
    "É o vento, e nada mais."

    Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
    Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
    Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
    Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
    Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
    Foi, pousou, e nada mais.

    E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
    Com o solene decoro de seus ares rituais.
    "Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
    Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
    Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
    Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
    Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
    Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
    Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
    Com o nome "Nunca mais".

    Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
    Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
    Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
    Perdido, murmurei lento, "Amigos, sonhos - mortais
    Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
    "Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
    Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
    Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
    E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
    Era este "Nunca mais".

    Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
    Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
    E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
    Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
    Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
    Com aquele "Nunca mais".

    Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
    À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
    Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
    No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
    Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
    Reclinar-se-á nunca mais!

    Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
    Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
    "Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
    O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
    O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
    Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
    A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
    A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
    Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    "Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
    Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
    Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
    Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
    Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    "Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
    Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
    Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
    Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
    Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
    Disse o corvo, "Nunca mais".

    E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
    No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
    Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
    E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
    E a minhalma dessa sombra que no chão há mais e mais,
    Libertar-se-á... nunca mais!

                                              ******

    (para acessar a versão original do poema clique aqui)
    (para acessar a versão traduzida por Machado de Assis clique aqui)

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Elfenlied (Canção do Elfo)



A noite na vila, o vigia gritou "Onze*!"
Um pequeno Elfo dormia na floresta – por volta das onze horas! -
E ele achou que a brisa noturna chamou o seu nome, do vale
...
Ou talvez Silpelit** estivesse chamando por ele.

Então o Elfo esfrega seus olhos, sai de sua casa caracol
E é como um homem bêbado, sua soneca não foi terminada;
E ele cambaleia, tip tap, através da enevoada floresta até o vale,
desliza por cima da parede;
Lá se senta o vaga-lume, luz sobre luz.

"O que são estas janelas brilhantes?
Deve haver um casamento lá dentro;
As pequenas pessoas estão festejando e se divertindo pelo salão.
Então eu apenas irei dar uma espiada!"

Vergonha! Ele bate sua cabeça em uma pedra dura!
Bem, Elfo, você já teve o suficiente?
Cuco! Cuco!

* Em alemão Elf pode significar Onze.
** No manga do Elfen Lied, Silpelip foi usado para se referir aos "mutantes" ou humanos-evoluidos, nos quais se baseia a história.

Elfenlied é um poema escrito pelo alemão Eduard Mörike e adaptado para canção por Hugo Wolf.
A versão acima foi feita através da tradução em inglês do poema, ficando provavelmente um pouco diferente da versão original (em alemão).

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Extraído do Jargão


"Sempre imaginei que poderia escrever uma coluna de economia usando un jargão falso assim, com pseudônimo. Não sei quanto tempo duraria até eu ser descoberto e desmascarado, mas acho que não seria pouco. Não estou dizendo que quem escreve sobre economia não sabe o que está escrevendo, ou se aproveita da ignorância generealizada para enganar. Estou dizendo que a análise econômica é uma arte tão imprecisa que, mesmo desconfiando do embuste, a maioria hesitaria antes de denunciá-lo. Quem garantiria que o meu enfoque diferente -minha defesa de um overspread corretivo sobre base de pagamentos, por exemplo- não era uma novidade que merecia estudo, já que ninguém parece mesmo saber o que é o certo?"


Luis Fernando Veríssimo,
Jargão - Comédias para se Ler na Escola

quinta-feira, 21 de junho de 2012

A Conversão de Ricardo


Antes de entrar no conteúdo desta postagem, propriamente dita, devo esclarecer um ponto que tem me incomodado: minhas postagens com cunho de debate religioso. Esse fato justificasse por minha atual leitura ser Os Irmãos Karmasovi do Dostoiévski (1879), livro do qual foi extraído a passagem abaixo, pequeno fragmento de uma longa conversa entre dois dos irmãos Karamasovi. Por ultimo, devo  alerta-los de que esta provavelmente não será minha ultima postagem que apresente essa abordagem.


"Possuo uma interessante brochura traduzida do francês, em que se conta a execução em Genebra, há cinco anos, de um assassino chamado Ricardo, que se converteu ao cristianismo antes de morrer, na idade de 24 anos. Era filho natural, dado por seus pais, quando tinha seis anos, a pastores suíços, que o educaram para fazer dele um trabalhador. Cresceu como um incomodado pequeno selvagem, sem nada aprender; aos sete anos, mandaram-no a fazer pastar o rebanho, ao frio e à umidade, mal vestido e faminto. Aquela gente não sentia nenhum remorso ao tratá-lo assim; pelo contrário, achava que tinha direito de fazê-lo, porque lhe haviam dado Ricardo como uma coisa e não julgava mesmo necessário nutri-lo. O próprio Ricardo conta que então, como o filho pródigo do Evangelho, quis mesmo comer a var­redura destinada aos porcos que eram engordados, mas era privado disso e batiam-lhe quando ele a roubava dos animais; foi assim que passou sua infância e sua mocidade, até que, tornando-se grande e forte, pôs-se a roubar. Aquele selvagem ganhava a vida em Genebra como jornaleiro, bebia seu salário, vivia como um monstro e acabou por assassinar um velho para roubá-lo. Foi preso, julgado e condenado à morte. Não se é sentimental naquela cidade! Na prisão, é logo cercado pelos pastores, pelos membros de associações religiosas, pelas senhoras patrocinadoras. Aprendeu a ler e a escrever, explicaram-lhe o Evangelho e, à força de doutriná-lo e de catequizá-lo, acabou por con­fessar solenemente seu crime. Dirigiu ao tribunal uma carta declarando que era um monstro, mas que o Senhor se havia dignado esclarecê-lo e enviar-lhe sua graça. Toda Genebra ficou emocionada, a Genebra filantrópica e beata. Tudo quanto havia de nobre e de bem-pensante acorreu à prisão. Beijam-no, abraçam-no: 'Tu és nosso irmão! Foste tocado pela graça!" Ricardo chora de enternecimento: "Sim, Deus iluminou-me! Na minha infância e na minha mocidade, invejava eu a varredura dos porcos; agora, a graça tocou-me, morro no Senhor!" "Sim, Ricardo, tu derramaste sangue e deves morrer. Não é culpa tua se ignoravas Deus, quando roubavas a varredura dos porcos e batiam-te por causa disso (aliás, tinhas bastante culpa, porque é proi­bido roubar), mas derramaste sangue e deves morrer. " Enfim chega o derradeiro dia, Ricardo, enfraquecido, chora e só faz repetir a cada instante: "Eis o mais belo dia de minha vida, porque vou para Deus!" "Sim", exclamam pastores, juizes e senhoras patrocinadoras, "é o mais belo dia de tua vida, porque vais para Deus!" O grupo se dirige para o cadafalso, atrás da carreta ignominiosa que leva Ricardo. Che­ga-se ao local do suplício. "Morre, irmão", gritam para Ricardo, "morre no Senhor, sua graça te acompanhe. " E, coberto de beijos, o irmão Ri­cardo sobe ao cadafalso, colocam-no na guilhotina e sua cabeça cai, em nome da graça divina."

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Deus Existe?


Fiódor: (...) Mas dize-me, no entanto, há um Deus ou não? Somente é preciso que me fales seriamente
Ivã: Não, não há Deus.
Fiódor: Aliócha, Deus existe?
Aliócha: Sim, existe.
Fiódor: Ivã, há imortalidade? Por pequena que seja, por mais modesta?
Ivã: Não, não há.
Fiódor: Nenhuma?
Ivã: Nenhuma.
Fiódor: Quer dizer, um zero absoluto ou uma parcela? Não haveria uma parcela?
Ivã: Um zero absoluto.
Fiódor: Aliócha, há imortalidade?
Aliócha: Sim.
Fiódor: Deus e a imortalidade juntos?
Aliócha: Sim. É em Deus que repousa a imortalidade.
Fiódor: Hum! Deve ser Ivã quem tem razão. Senhor, quando se pensa quanto de fé e de energia essa Quimera tem custado ao homem, em pura perda, desde milhares de anos! Quem, pois, zomba assim da humanidade? Ivã, pela derradeira vez e categoricamente: há um Deus, sim ou não?
Ivã: Não, pela derradeira vez.
Fiódor: Quem, pois, zomba do mundo, Ivã?
Ivã: O diabo, provavelmente – escarneceu Ivã.
Fiódor: O diabo existe?
Ivã: Não.
Fiódor: Tanto pior. (...)


(Dostoiévski, 1879 - Os Irmãos Karamazovi)