Antes de entrar no conteúdo desta postagem, propriamente dita, devo esclarecer um ponto que tem me incomodado: minhas postagens com cunho de debate religioso. Esse fato justificasse por minha atual leitura ser Os Irmãos Karmasovi do Dostoiévski (1879), livro do qual foi extraído a passagem abaixo, pequeno fragmento de uma longa conversa entre dois dos irmãos Karamasovi. Por ultimo, devo alerta-los de que esta provavelmente não será minha ultima postagem que apresente essa abordagem.
"Possuo uma interessante brochura traduzida do francês, em que se conta a execução em Genebra, há cinco anos, de um assassino chamado Ricardo, que se converteu ao cristianismo antes de morrer, na idade de 24 anos. Era filho natural, dado por seus pais, quando tinha seis anos, a pastores suíços, que o educaram para fazer dele um trabalhador. Cresceu como um incomodado pequeno selvagem, sem nada aprender; aos sete anos, mandaram-no a fazer pastar o rebanho, ao frio e à umidade, mal vestido e faminto. Aquela gente não sentia nenhum remorso ao tratá-lo assim; pelo contrário, achava que tinha direito de fazê-lo, porque lhe haviam dado Ricardo como uma coisa e não julgava mesmo necessário nutri-lo. O próprio Ricardo conta que então, como o filho pródigo do Evangelho, quis mesmo comer a varredura destinada aos porcos que eram engordados, mas era privado disso e batiam-lhe quando ele a roubava dos animais; foi assim que passou sua infância e sua mocidade, até que, tornando-se grande e forte, pôs-se a roubar. Aquele selvagem ganhava a vida em Genebra como jornaleiro, bebia seu salário, vivia como um monstro e acabou por assassinar um velho para roubá-lo. Foi preso, julgado e condenado à morte. Não se é sentimental naquela cidade! Na prisão, é logo cercado pelos pastores, pelos membros de associações religiosas, pelas senhoras patrocinadoras. Aprendeu a ler e a escrever, explicaram-lhe o Evangelho e, à força de doutriná-lo e de catequizá-lo, acabou por confessar solenemente seu crime. Dirigiu ao tribunal uma carta declarando que era um monstro, mas que o Senhor se havia dignado esclarecê-lo e enviar-lhe sua graça. Toda Genebra ficou emocionada, a Genebra filantrópica e beata. Tudo quanto havia de nobre e de bem-pensante acorreu à prisão. Beijam-no, abraçam-no: 'Tu és nosso irmão! Foste tocado pela graça!" Ricardo chora de enternecimento: "Sim, Deus iluminou-me! Na minha infância e na minha mocidade, invejava eu a varredura dos porcos; agora, a graça tocou-me, morro no Senhor!" "Sim, Ricardo, tu derramaste sangue e deves morrer. Não é culpa tua se ignoravas Deus, quando roubavas a varredura dos porcos e batiam-te por causa disso (aliás, tinhas bastante culpa, porque é proibido roubar), mas derramaste sangue e deves morrer. " Enfim chega o derradeiro dia, Ricardo, enfraquecido, chora e só faz repetir a cada instante: "Eis o mais belo dia de minha vida, porque vou para Deus!" "Sim", exclamam pastores, juizes e senhoras patrocinadoras, "é o mais belo dia de tua vida, porque vais para Deus!" O grupo se dirige para o cadafalso, atrás da carreta ignominiosa que leva Ricardo. Chega-se ao local do suplício. "Morre, irmão", gritam para Ricardo, "morre no Senhor, sua graça te acompanhe. " E, coberto de beijos, o irmão Ricardo sobe ao cadafalso, colocam-no na guilhotina e sua cabeça cai, em nome da graça divina."
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